RIO 1979
Boca da Noite foi entregue por Odylo Costa, filho, à Editora Salamandra, num final de sexta-feira. A tarde estava cinza e as escadinhas da editora pareciam longas e altas a seu coração. Uma semana depois partia.
Incluíram-se ainda no livro os dois poemas escritos depois da entrega, quase premonitórios.
My work has the incompetence of pain.
Anna Wiekham
…e fiz os versos quase às escondidas,
como quem pratica vícios secretos.
Miguel Torga
Ao leitor
Vejo-me aqui tão repetido!
E eu me quisera sempre novo,
embora se repita a vida,
repitam-se as canções do povo.
Mas quando a imagem se repete,
o amor perde a graça do novo.
Quero fazer do meu eterno
para servir de exemplo ao povo.
Se a vida foi tão repetida,
a ponto de não ter mais novo
sentido, o amor se refugie
nas canções antigas do povo.
Que há sempre nelas um sentido
de cantiga de roda, novo
porque cantado pelas vozes puras
dos meninos do povo.
E por mais antigas que sejam
e repetidas, sempre é novo
o olhar que inventa um novo mundo
nas canções antigas do povo.
Pueril, o hosana que descobre
o mundo velho — de olho novo —
faz eterna, nas vozes novas,
a mais velha canção do povo.
Para que a imagem repetida
não lhe tire a graça do novo,
farei do meu amor eterno
como os velhos cantos do povo.
Espero em Deus que assim se faça,
pois, em seu reino sempre novo,
sua vontade, que aceitamos,
foi pão nosso — como o do povo.
Dedicatória
Tanto quisestes ter um filho poeta!
E que esse filho fosse eu, pedia,
apontando o mais velho, uma secreta
aspiração, quase uma profecia…
Bem cedo me perdi na busca inquieta
dos caminhos mas sempre a poesia
foi para mim patética e incompleta,
desajeitada agora, agora fria.
Veio depois a vida e mergulhou
a minha alma na grande dor severa,
barco afogado em rio adormecido.
Do sofrimento o verso rebentou.
Antes, meu Pai e minha Mãe, quisera
que esse verso jamais fora nascido.
Epígrafe
Se quiseres, leitor, nos versos
que tua mão em seguida tem,
aprendes a sofrer sorrindo
para fazer sorrir também
aquele que calado sofre.
Sorrindo ou não, mas mansamente,
como quem sabe inevitável
que, havendo sol, haja nascente
mas haja tarde e pôr-de-sol,
não te ponho às costas o lenho
da minha cruz. Digo-te que amo
— na verdade — tudo o que tenho.
E se não tenho tudo o que amo,
materialmente, tudo é meu
noutra espécie transverberada
que é para mim Inferno e Céu.
Os Mirantes do Ilhéu
A dor maior
Nada mais do passado. Da memória
quero apagar tristezas e alegrias:
renascer sem cantigas, sem história,
sem velhas cartas, sem fotografias.
Ter a inocência natural de um bicho
manso, já deslembrado da floresta.
Ser como o dominó que, por capricho,
não dança, e se abandona em plena festa.
Mas quem disse possível o impossível?
Embaraçam-me os passos nas lembranças.
Olho em redor. Revejo. Tantas crianças…
Ó minha vida inteira, será crível
que a dor de agora, só fantasiada,
doa mais que a alegria recordada?
“A glorious day”
Bebo, a goles, a glória deste dia,
goles medidos de bebida rara.
Bebo este céu azul, esta alegria,
do capim verde em flor na manhã clara.
Meu olhar rudemente acaricia
os gravatás na pedra. Desejara
alisá-los com a mão, que guardaria
sua aspereza insólita e preclara;
e, sentando-me ao sol, ir absorvendo
o calor dos espaços, este frio,
que a velhice me trouxe, dissolvendo
na máquina do mundo poderosa
como quem atravessa a nado um rio
tendo na mão uma pequena rosa.
A mina exausta
No fundo escuro da mina exausta…
De um artigo de Otto Lara Resende
sobre Gustavo Corção
Da mina exausta
no fundo escuro
— musgo na pedra,
líquen no muro —
límpida e rara
poreja uma água
como nas almas
secreta mágoa.
Dentro da terra
mora o segredo
dessa ternura
como degredo
de um céu mais longe.
Marca de uma asa
de anjo perdido
rumo de casa…
Na mina exausta,
no fundo poço,
não há mais corpo,
nem pele ou osso,
apenas alma.
Luz? Luz escura,
que se fez negra
por ser tão pura,
e corta os seres
como diamante.
As mãos te sangram.
Vens ofegante!
No fundo poço
tocaste a cruz:
o carvão negro
é todo luz.
A noiva judia
de Rembrandt
Pesada de ouro, vimos juntos
de ouro vestida, espessamente,
aquela noiva que o pintor
carregou de ouro — e ouro somente.
Não estava, porém, no ouro
que, óleo sobreposto, a vestia,
mas no seu rosto o êxtase pleno
de tranquilidade e alegria.
E era o rosto, e não o vestido,
que nos jurava que seria
feliz para jamais aquela
luminosa noiva judia.
A ponte
Para quem sabe andar de olhos abertos
existe um mundo em cada grão de areia.
Dentro dele há segredos encobertos
onde a matéria se desencadeia.
E ao mesmo tempo o mar é meu consolo.
O homem criou o barco, e de paredes
fez a casa, tijolo após tijolo,
para o abandono sensual das redes.
O infinito da linha do horizonte
se dispersa e concentra no infinito
do universo das coisas pequeninas.
Não tenhas medo, minha amiga. A ponte,
que liga a vida e a morte como um grito
de amor, cobriu-se agora de boninas…
“A thing of beauty…”
Julgando — como o poeta — que uma cousa
de beleza virava uma alegria
para sempre, tentei, tal qual quem ousa
ferir a pedra misteriosa e fria
do monte feito de silêncio e lousa,
arrancar da palavra a melodia
em que o olhar dos homens cai, repousa,
e de que faz o pão de cada dia.
Tive nas mãos as horas perecidas:
a chuva que da rede se ouve e sente,
céus, casas, bichos, campos, risos, vidas…
Nada soube guardar. E por isso, eu
recordo aqui, desesperadamente,
tudo quanto era belo, e que morreu.
Aboio
Para Alberto da Costa e Silva,
e também para Vera, sua mulher,
agradecendoAs Linhas da Mão
É tudo tão bonito, tão bonito,
que até nos dá vontade de gritar.
Mas se gritasse, a força desse grito
léguas afora arrancaria o ar
dos seres todos: calaria aflito
o mugido dos bois no seu pastar.
Teu cavalo, nascido do infinito,
tange a novilha rumo do tear
para nele deixar a imagem pura
dos bichos inocentes e fecundos,
jumentos, vacas, aves e formigas,
numa estranha, asperíssima escritura,
vinda de secos céus e longes mundos.
Aboio triste… límpidas cantigas…
Como o rio que cresce, como o rio
que o mugido dos bois no seu pastar
— murmúrio de água — leva até o mar.
Antemanhã
Quem crê na vida não recusa a morte,
sabe que a noite vem, espera a aurora.
Mergulha ambas as mãos no azul da sorte,
aguarda, sereníssimo, sua hora.
Lembra (e dói) a delícia que encerrou
nos paladares crus da mocidade.
Mas em vez de prender-se ao que passou
desenha as utopias de outra idade.
De uma outra idade mais feliz — e quanto! —
onde haja imperfeição, onde haja pranto
mas não falte consolo humano a quem
precisa de outro alguém que o sinta alguém.
Nesse mundo melhor, de braço dado,
viveremos o sonho inacabado.
Arte de envelhecer
A arte de envelhecer que nos foi dada
é sábia e atenta. No mais leve gesto
vive a lembrança de outro antigo nada
com a força oculta de um palimpsesto.
Estranho mundo, lúcido, incorruto,
feito de tantas horas em comum,
tem a frescura matinal do fruto
e o desconforto egoísta do jejum.
Renascidos nos corpos enlaçados,
transfigurados na alma confundida,
alegram nosso amor dias passados,
vozes presentes guiam nossa vida.
E este sabor noturno que em nós canta
vem do ontem como a seiva de uma planta.
As aquarelas
Não penso azul, nem verde, nem vermelho,
nenhuma cor vejo isoladamente:
quero a vida total, como um espelho
a que não falte flor, folha ou semente.
A natureza neste abril redondo,
esconde formas, seres, linhas, cores,
aqui e ali bizarramente pondo
manchas involuntárias, multicores.
Recuso-me a adotar bandeira ou marca.
Nada escolho. O mistério natural
me envolve inteiro. Em tuas aquarelas
tudo renasce — como quem da barca
do dilúvio, depois do temporal,
visse de novo a terra das janelas…
As pianolas
O esquecimento não existe, disse
Borges, e o repetiu em mais de um verso.
As memórias confusas da velhice
são mistério e castigo no universo.
A lembrança atormenta e não consola
quando, dentro de nós, contra a vontade,
toca implacavelmente uma pianola
de outrora… As partituras da saudade…
Do silêncio perdido faz-se um mundo
que machuca e que punge mas que salva
deste cansado assombro de existir.
O caminho aos tateios é profundo.
Busca alegre no azul a estrela d’alva
que vai chegar, partir — e ressurgir.
Boca da noite
De repente, eis-me em tudo tão tranquilo
como se a morte já tivesse vindo.
Não me ocupa o amanhã para construí-lo.
Nem me lembra se o ontem não foi lindo.
Da cinza não me queixo pois foi brasa.
Entre os livros não sofro solitário.
Árvore e filhos deram luz à casa.
Tive flores de irmãos no meu calvário.
Sinto entre as sombras o invisível rio
descer tão lento agora que a canoa
para no susto antigo que a povoa.
Nem alegria ou dor, calor ou frio.
No mundo ponho uns olhos bons de avô:
foi a boca da noite que chegou.
Cinza
Poema semi-desentranhado de um
fragmento de Alto-mar maralto,
de Afonso Arinos de Melo Franco.
Em fruto seco, em cinza, em nada
torna-se a flor que não nascera.
O sonho, em vida relembrada.
O mel não foi: é apenas cera.
Mas da saudade, misturada
a uma tristeza que até beira,
pelo cansaço, o desespero,
e uma inviolada solidão,
brota uma nova flor alada,
sombra, nas mãos finas de fada,
daquela outra que não nascera.
Despedida
Meu amor, pede a uma velhinha da nossa terra
que molde para mim uma vela de carnaúba
à maneira de antigamente
e guarda esse objeto para a hora da despedida.
Antes que a luz dos olhos se apague
quero transmiti-la à chama clara,
fogo de imortalidade guardado na cera das palhas rasgadas,
afeiçoada em formas de ferro por mãos do povo.
Dela se espalhará por todo o quarto
o cheiro fresco das manhãs de inverno:
mel silvestre e relva em flor, água de chuva e curral de gado,
vento e campo.
Ilhéu
Nasci numa ilha.
Era meu destino.
Numa ilha vivo
desde pequenino,
a estender os braços
pelo mundo todo
em busca de traços
que à terra me liguem.
Quero o continente!
Não me deixem só,
não me quero ausente.
Ninguém me compreende
esta busca ansiosa:
tenho o mar comigo,
quero ainda a rosa.
Joguem fora a âncora!
Pois o amor que achei,
meu anel de amigos
e a casa do rei
trazem sede e fome
de mais terra e céu.
Por Deus compreendam
quanto sou ilhéu!
Careço de afetos
em roda de mim.
Foi sorte ou desgraça,
numa ilha vim.
Tempo de enxurrada
nessa ilha nasci,
como a água que corre
sou daqui, dali.
Por Deus me acarinhem
que nasci na ilha,
num mês de enxurrada,
mês de água andarilha,
sobrados e terra
porém terra pouca,
lavado azulejo
sob uma água rouca.
Meu amor me abraça
porque sou ilhéu
ando só — na areia
entre águas e céu.
Inverno
As cigarras chegaram. Vem o estio.
Traz sol e céu, porém sabor de outono.
De outono? Não. De inverno. Sinto frio
na alma, e no corpo arma sua tenda o sono.
Nos ombros de memória carregados
o mais leve labor cria fadiga.
Todos os meus instantes são pesados.
Esqueci a dulcíssima cantiga.
Pois venha o inverno. O choro dos sabiás
soluça e embala. Ensina-me a viver
a roupa nova dos jequitibás.
As águas cantam. Vão regando molhos
de flores que acabaram de nascer.
E reencontro o caminho de teus olhos.
Lágrima
O peso de uma lágrima!
Antero de Quental
O peso de uma lágrima é tão leve
que não causa surpresa ver quanto ela
ajuda a vida a ser mais pura e breve,
mesmo se queima os olhos de quem vela.
Não falo em dores que ninguém descreve
e que nenhuma confissão revela,
porém na mágoa que a chorar se atreve,
humilde: uma só porta, uma janela…
Penso nos sofrimentos declarados
publicamente, nos extremos prantos
que não se escondem: correm sem pudor.
Sobe dos corações aliviados
a levíssima carga dos encantos
em que se dissolveu a própria dor.
Leitura
Lendo o Diário de Miguel Torga
anotação do Natal de 1968.
Senhor, vieste para ser humano,
prisioneiro da nossa imperfeição.
A nós, porém, disseste, no Sermão
da Montanha: — Sede vós perfeitos
como é perfeito meu Pai nos céus.
Chegaste a invocar o salmo
que proclamava aos homens: — Vós sois deuses.
Irmãos, nos fez o Verbo divididos,
na mais atroz contradição:
Deus se vestiu da carne do Imperfeito,
porém nos condenou à perfeição.
Manhã de outrora
Os galos-de-campina nas mangueiras
fervilhavam na inquieta formação
que inventava modinhas brasileiras:
e o campo parecia uma visão
como se nele, além das carnaubeiras
ponteando o espaço verde pelo chão,
morasse a luz das horas derradeiras,
ainda mais dilatada que a amplidão
do descampado em seu tranquilo encanto.
As árvores vestiam-se de festa:
um pouco mais e punham-se a dançar.
Calavam-se na terra a voz e o canto.
Tu, corpo e alma, olhos, cabelos, testa,
eras mais leve do que o próprio ar.
O Cristo de estopa
Esse Cristo de estopa em minha estante,
feito só de pobreza e de humildade,
não tem traços marcados no semblante,
e é vaga mesmo sua humanidade.
Talvez assim se faça mais tocante,
nessa indefinição, sua verdade.
Sem os espasmos crus do agonizante
faz melhor companhia: é só bondade.
E passo então a conversar com ele.
Conto-lhe histórias de pastor e rei
e os cansaços do ser quotidiano.
No tecido de fibra pobre, aquele
não é somente um Cristo que ganhei,
mas o Amigo: de carne e não de pano.
O esfolado
Quando menino, vi, na sala de aula,
no tumulto do rude aprendizado,
calar-se o riso tonto dessa jaula
ante a presença muda do esfolado.
O nervosismo dos adolescentes,
invadindo calouro e veterano,
mal deixava escutar a voz dos lentes,
desvendando o segredo ao corpo humano.
Um manequim de massa! No entretanto,
em mistura cruel de assombro e medo,
a custo é que era, aos poucos, desmontado.
Nunca pensei, jamais, naquele espanto,
que a vida me impusesse este degredo
de entre os homens andar descorticado.
O Jardim das Delícias
Diz o Anjo:
— Tem pena dos viventes
nos circos por si próprios exibidos
e que apenas por serem diferentes
são nas sombras da terra destruídos.
Vão presos de pesquisas inclementes,
mágoa dos travestis, clowns proibidos,
num jardim de delícias complacentes
o prazer de punir, serem punidos…
Ó carne mais marcada do que a morte!…
Proclamam-se triunfantes, degradados
na maldição das cinzas e dos risos.
Tu, que a um poeta foste dada em sorte,
e és pura e natural, serena e forte,
apieda-te dos seres condenados
ao artifício desses paraísos.
Oferta
A minha fonte está nesta exigência,
na aspiração serena do perfeito.
Fonte e castigo, a imperfeição é um leito
a que me ajusto como penitência.
Não me proponho — nunca! — à faina ingrata
da tortura da forma, essa que outrora
jogava o poeta insone noite afora,
artesão de ouro trabalhando a prata.
Quero o abandono incólume do fruto,
na disciplina rija e natural,
onde a árvore não põe sinal de esforço.
Trago-te o verso, após, como um tributo
ofertado na mão, luz matinal
de abelha e mel a escorregar do dorso.
Os mirantes
Poblado estoy de muchas azoteas.
Rafael Alberti
Dentro de mim cruzaram-se mirantes,
abertos para os largos do oceano.
De cima deles, para os navegantes,
houve sempre sinal de amor humano.
As janelas, a todos os instantes,
perscrutavam as velas. Se algum pano
caía ao longe, e vozes suplicantes
traziam medo, angústia, desengano,
logo gritava aos homens por socorro.
Jamais, porém, eu para mim pedia,
pois, contra o mau destino e a costa brava,
teu vestido era o manto a que recorro,
teu cabelo o desenho de alegria,
tua esperança o sonho que velava…
Os objetos
No fechado silêncio dos objetos
mais simples mora um toque de magia.
De um só tijolo nasce a casa: afetos,
barro, sol, água, mesa, moradia,
e a presença tenaz das mãos humanas,
afeiçoando o mistério da existência
e dando às coisas mais quotidianas
senso de vida — e de sobrevivência.
Chardin, quando há dois séculos viveu,
uma arraia pintou, disforme, aberta
em sangue e dentes, agressiva e forte.
Veio o tempo e com ele emudeceu
muita glória que a moda julgou certa.
Aquela arraia sobrevive à morte.
Os pombos: o ninho
Moram pombos na pedra. Quando em quando
— de onde o musgo aveluda uma reentrância —
se erguem asas ao céu, tatalam voando
rumo do chão ou rumo da distância.
Essa presença humilde vai marcando
das lembranças intérminas da infância
os olhos dos meninos, vai gerando
neles inapagável rutilância.
No muro do meu quarto há mesmo um ninho
com seu rumor de arrulhos e de achegos
que me interrompe quando a sós comigo.
É a vida que entra pela vida. O linho
das penas brancas e os desassossegos
de amor fazem da casa um mar de abrigo.
Um pombo: a tormenta
Num buraco da pedra refugiou-se
um pombo, só, sem companhia alguma.
A tarde, até então tranquila e doce,
vestiu-se de relâmpagos e bruma,
e a chuva esvoaçou, como se fosse
feita de voo mas também de pluma,
e na explosão que a trovoada trouxe
desfizeram-se as nuvens, uma a uma,
e caíram nas calhas feitas água,
e a água em saudade se mudou na bica.
Água da infância nos lavou a cara…
E como o estouro de uma grande mágoa
que atrás dos olhos quer ficar, não fica,
vi que o pombo nas águas revoara.
E enfrentava a tormenta cara a cara.
Passagem
Tudo é exílio.
Dante Milano
Fiapo de nuvem boiando no céu
som de pequenos frutos de figueira brava estalando debaixo das alpercatas
ar fresco na manhã azul.
Dante, nem tudo é exílio,
mas tudo é passagem.
O terno de brim
machucado e limpo
de meu Pai
amaciava com o uso.
O linho velho
cobre melhor o corpo noturno.
Até o anjo do Senhor marcou de sangue a páscoa,
às pressas partilhou da refeição,
nem sentou-se à mesa,
calçado e de pé
comeu carne e pão.
No gosto das coisas terrestres as lembranças renascem sempre:
o primeiro corredor
a primeira canoa
o primeiro telhado
o primeiro galope
o primeiro mergulho
a primeira noite de amor.
Por uma ervinha
À memória de Rosalía de Castro,
que se queixava da palha seca
da Estremadura e da Mancha,
“sin unha herbiña que distraya a mirada”
Pobre Rosalía!
Uma ervinha apenas
que distraia o olhar
uma erva do campo
para eu me agarrar.
Na paisagem dura
— de desesperar —
uma ervinha verde
para me salvar.
Verde limpo e fresco
diverso do mar
pingado de orvalho
de mãos a lavar.
Que nela me prenda
para navegar
que nela flutue
longe de afundar.
Uma ervinha apenas
para não secar
que me ressuscite
nascido do luar.
Uma ervinha apenas
contra céus sem fim
entre as palhas secas
brote para mim.
Uma folha de erva
fio de capim
que vença os abismos
Senhor do Bonfim,
e aponte o caminho
que a teus pés conduz
me dê boa morte
Menino Jesus,
me vire do avesso
me livre do mal
me dê vida nova
num novo natal.
Salamandra
Ó salamandra, que és de fogo feita,
no fogo vives, dele te alimentas,
mostra o caminho, ensina-me a receita
para em fogo vencer as más tormentas.
Pois só na chama livremente aceita
tu, puro amor, o fogo que sustentas
transformas na puríssima colheita
que cada noite no silêncio inventas.
Meu símbolo do mundo está no eterno
animal vivo, em fogo renovado,
não morto, triste, mineral amianto.
Gota de suor divino, apaga o inferno.
E quem na chama o vir não ser queimado
pense no meu amor, pense em meu canto.
Soneto com mote marítimo
Mote:
O tempo das canções e do naufrágio
Ivan Junqueira
O tempo das canções e do naufrágio;
das sereias nas pedras mas das praias
negras, e céu nevoento, e verde limo;
e das velas rasgadas; e dos cascos
rendilhados de lâminas cortantes
e de conchas aspérrimas; do lodo
do mais secreto mar; de peixes cegos,
e de arraias que pulam sobre os barcos,
esmagando as enxárcias arruinadas;
dos mastaréus caídos; do convés
grosso de polvos e cruéis crustáceos,
chegou para o navio. Resta agora
— como esperança, quase como aurora —
lutar sozinho com a Baleia Branca.
Soneto de louvor
Graças vos dou, Senhor, de que este idioma,
não flamengo ou tupi, me tenhais dado.
Esta língua viril nascida em Roma
que em vozes femininas num mercado
africano entendi. Nunca idioma
soube canto de amor mais delicado
que este que contra as hostes de Mafoma
em cinco mil guitarras foi cantado.
Que louvor tecerei que outro não tenha
em seu louvor erguido? Que doçura
de mel e flor posso trazer na mão?
Nele espero escutar quando me venha
a hora final, amor, tua voz, pura
como as violas de arame do sertão.
Versos de travessia
Para Maria Julieta
Vê, minha alma, os Andes,
os cimos gelados
das montanhas grandes,
cor do pão por dentro.
Pela tarde os cinge
a luz da ante-noite
que de rosa os tinge
como sombra mansa,
transparente, em vez
do contínuo manto,
violento, alvejado,
e muito mais pálido
até do que o pão
no seu branco miolo,
branco de asas brancas
na neve e no sal.
Na boca da noite
de repente cessa
a dor inconfessa.
Cai silêncio, paz.
E a vida, composta
de paixão submersa.
envolve a montanha
maternal e quieta.
Vem da natureza,
das casas e do ar,
a tranquilidade
do sofrer aceito.
No afago das coisas
o espinho esmaece.
Abre asas a alma,
clara, leve e lúcida,
ordenada e calma,
na noite que desce.
Viagem
Mote:
Veste o terno mais velho, e vai-te embora.
Alphonsus de Guimaraens Filho
Veste o terno mais velho, e vai-te embora.
Atravessa o quintal e pula o muro.
E entre a morte do luar e a luz da aurora
parte na antemanhã, ainda no escuro.
Bebe as velhas fachadas, as cidades
que a água penetra, ameiga e acaricia;
e nelas o sinal de outras idades,
gosto de vinho velho em novo dia.
Quando cessar a febre das viagens
e cansares de tudo — das paisagens,
de ignotas gentes e de virgens praias —,
volta aos brejos natais. Arma tua rede
em pleno campo. E mata tua sede
de pureza nas grandes sapucaias.
Cantar de Amor
RIO 1979
Anti-transitório
…Tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
Carlos Pena Filho — A solidão e sua porta
Hoje, é um fabricante de brinquedos.
Carlos Pena Filho — O tempo da busca
Eu nunca soube amar o transitório.
Por isso, fabricante de brinquedos,
Nesta sede do eterno e do incorpóreo,
Construí o amor mais forte do que os medos
Que invadiram na infância minha cama.
Disse a mim mesmo: — Ama seu corpo. É belo.
E nas fidelidades de quem ama
há de um corpo existir — sem paralelo
na jura perfeitíssima do instinto.
O amor melhor, porém, se perpetua
no conselho recíproco das almas,
mais forte do que o ópio, do que o absinto,
juntando a luz suavíssima da Lua
e o fecundo calor das grandes calmas.
Canto de aprendizagem
Cantei mais de amor
que de sofrimento:
deixei que meu pranto
secasse no vento.
Vozes pequeninas,
que me dera Deus,
cresceram, geraram
novos filhos meus.
E a dor, sempre viva
mas encarcerada
na humana alegria,
dói, mas quase nada.
Não cantei o tempo,
as guerras, o mundo.
Fui calando aos poucos
soluço profundo.
Ganhei o direito
de esquecer a dor
escondendo a minha
nuns versos de amor.
Não quis a epopeia,
o hino marcial,
o sonho, a utopia,
denúncias do mal,
visões do futuro.
Apenas, Senhor,
murmuro de noite
cantigas de amor.
Nem mudar projeto
as regras da vida.
Quero compor — simples
que nem margaridas
sem perfume algum —
confissão de amor,
de forma singela
e singela cor.
Nem proponho feitos
que o destino domem
mas o amor somente
que é próprio do homem.
Lavrei estes versos
para o teu regaço,
colhe-os com teus olhos,
rega-os com teu braço,
e aprende comigo
a esconder a dor
na ciência espontânea
dos versos de amor.
Canção do pastor erradio
Trago as mãos vazias
de versos de amor.
Sou chão: sem teus olhos
não nasce uma flor.
Não há folha de árvore
nem rasgão do céu
que atravesse o espaço
deste meu mundéu.
Neste fingimento
de bicho acuado
resta-me a esperança
de me ver salvado
pelo riso teu:
vagueio na serra
como os gados tardos
andam pela terra
à procura de água
para sua sede.
Quero tua face.
Quero tua rede.
Cantiga do vaqueiro perdido
Não te trago rosas
que rosas não tenho
mas roupa de couro,
corda de sedenho,
cavalo de campo,
sela de vaqueiro,
gibão e perneira
sujos do atoleiro,
em que me perdi.
O que trago e dou,
além do amor meu,
é flor que brotou
no cerrado seco,
milagre de Deus.
Dá-lhe a luz dos olhos,
desses olhos teus.
Sou vaqueiro rude,
de sela rasgada:
colhi-a entre espinhos,
esta madrugada,
entre unhas-de-gato,
no seco cerrado,
e para apanhá-la
me perdi do gado.
Feri minhas mãos,
rasguei minha sela,
joguei fora o lenço
de seda amarela,
arranhei meu peito,
e — o mais desgraçado —:
passei a vergonha
de perder meu gado.
Mas a flor, nascida
no cerrado seco,
vem de sol e vento,
não do frio beco.
Cheira a manhã nova,
trilha na chapada,
erva mal desperta
mas já orvalhada.
Dá-lhe a luz dos risos
desses olhos teus:
será sempre viva,
milagre de Deus.
Confidência
Se nesta continuada confidência
muito falei de amor, perdoai, senhores.
Ide a outro vinho, de mais pura essência.
Somente sei falar dos meus amores.
Não quis calar os males da existência,
nem no verso esconder alheias dores.
Conto de amores porque a mágoa, vence-a
Amor de sabidíssimos sabores.
E do mundo, dos homens, da pobreza,
do deserto e da neve na montanha,
e do prato de sopa — em qualquer mesa
que um par de velhos trêmulo divida —,
de tudo falo sem falar, tamanha
é a força do Amor povoando a vida.
Estática na estrada
Como o rádio que em curvas da montanha
ora sussurra, ora estridula o canto,
o meu sonho fiel vos acompanha
e grita ou cala sob o vosso encanto.
Ponho no amor uma atenção tamanha
que saiba e lembre o mínimo recanto
da vossa natureza, mesmo a estranha
hora inquieta de dúvida e de espanto.
Assim, senhora, sois, no todo vosso,
a matéria central do meu estudo,
e aprendo sempre a amar-vos quanto posso.
E agora silencio, agora clamo,
nem direi como sois, porque sois tudo:
quanto mais vos conheço mais vos amo.
Eterno
Se nosso amor um dia nos cansasse
já não seria o nosso amor, senhora:
mudaria outra sombra vossa face,
nada haveria do meu ser de agora.
Quanta treva cairia que cegasse
meus olhos no terror daquela hora?
Quanta guerra que o mundo devastasse,
e só de imaginar a mente chora!
Bem sabemos que não, porque do eterno
se fez o gosto que nos junta e anima
e na carne nos pôs o selo da alma.
A infância, a tarde, o cheiro bom do inverno
com as chuvas novas, os paus-d’arco, o clima
da saudade, meu Deus!, que paz, que calma…
Falsa monotonia do amor perene
Não vejas, neste amor, monotonia.
A luz dos olhos muda sempre; e embora
cada segundo mude, é o mesmo o dia
em que os segundos vão marcando a hora.
Muda a nuvem no céu: ninguém diria
que é novo o céu porque vem noite agora.
E a terra é a mesma, sonhe a tarde fria,
rasgue o calor o incêndio dessa aurora.
Pela continuidade das essências
uma essência de vida continua,
e muda cada instante inaugural.
Assim o amor nos veste as existências
de alma perene e de verdade nua.
e é sempre novo sendo sempre igual.
Glosa a Lope de Vega
…nos olhos me levais alma e sentidos…
Luís de Camões
Dos libros, tres pinturas, cuatro flores,
pedia Lope para ser feliz.
Não falou de riquezas nem de amores.
Esse pouco de pobre — não mais — quis.
Castos delírios de espanhol asceta…
Passaram quatro séculos, e um dia
Gabriel Celaya, também grande poeta,
jurou por Deus que nada mais queria.
Temos, porém, pai, mestre e capitão,
no soldado fortíssimo, que disse
a uns olhos entregar alma e sentidos.
De coisa alguma havemos precisão.
Livros, quadros e flores, que doidice!
Basta-nos ser de um só Amor providos.
Mergulho
Mergulho no meu ser desconhecido
que nem a ti foi dado penetrar,
num túnel profundíssimo escondido,
sem rumo ou luz, onde até falta o ar.
Vêm de repente temporais, no ruído
de vagas doidas sacudindo o mar,
ou calmarias sem nenhum sentido,
sombras mansas na sombra de um pomar.
Inconstante demais no desvario,
as solidões do meu deserto são
espontâneas e alegres como um rio.
Não te levo comigo à promissão
da terra nova. Mas o íntimo frio
se desfaz ao calor da tua mão.
Navio antigo
Vi dizer que passava esse navio antigo…
De uma mulher do povo, em São Luís,
a Aurélio Buarque de Holanda,
sobre a aparição lendária do
navio-fantasma de Dom Sebastião.
Vi dizer que passava esse navio antigo,
pesado a naufragar de sedas e de areias.
Mas, em vez dos sinais dos canhões do inimigo,
carregava no casco a marca das sereias,
das unhas de suas mãos na agonia do abrigo,
do sangue que fugira aflito às suas veias,
entre espasmos de amor e auroras de perigo,
rochedos de coral e assustadas baleias.
No mistério do amor sobrevindo nas ondas
toda a lição da vida aceito quando acende
a aparição do luar à volta das lembranças.
Nas madeiras da nau encravaram-se mágoas.
Restam, na cicatriz que às noites me surpreende,
teus cabelos de outrora, amor… As tuas tranças…
Noiva
Linda, como somente vós sabeis,
forte, como a esperança que em vós ponho,
alegre, como fostes, sois, sereis,
assim vos penso, assim vos recomponho,
curvada embora à vida e às suas leis
mas nunca libertada do meu sonho.
Fostes a noiva na manhã de Reis,
ainda hoje o sois nos versos que componho.
Leio Luís de Camões, o nosso poeta,
a suspirar do amor mais desgraçado
e a maldizer o dia em que nasceu.
Sobrepondo-se à morte e à dor secreta,
o amor feliz, senhora, é o nosso fado,
cantá-lo, a chave do destino meu.
O miraculado
Eu me pergunto se valeu a pena
falar de amor o tempo todo assim,
buscar a imagem sempre mais serena,
não pedir nunca aos outros para mim
o consolo impossível, mas pedir
que a cruz quebrassem, me livrando
os braços para às dores alheias acudir
como quem segue o Cristo pelos Passos.
Não me louvo do amor que me foi dado,
nem sei se o mereci ou foi milagre
natural como o orvalho no capim.
Conservo o espanto do miraculado:
que a saliva de Deus nos olhos sagre
para o cego de amor a luz sem fim.
O poço
Nunca me canso de cantar o amor.
Não o amor ideal, o amor abstrato,
imaginado apenas, com sabor
de novela, de filme ou de contrato,
sem espinhos reais rasgando a dor,
sem os limites físicos do fato.
Falo do amor vivido, um só senhor
de nossa vida, fruto, flor e cacto.
Natural feito a moça na costura,
purificado e branco como um osso
de rês morta esquecido na chapada.
Misto de sangue e riso, de amargura
e bondade, profundo como um poço
de água escondida, mas adivinhada.
O Quixote de barro
O meu Cristo de estopa! E do seu lado,
na mesma estante, atrás da minha mesa,
um Quixote de barro, tão quebrado
que o veste uma tristíssima beleza.
Guarda tão pouco do que foi! O estado
do corpo nem mais lembra a natureza.
Mas assim mesmo, feio e mutilado,
traz a ilusão presente à minha mesa.
Ó minha bem amada, ó mãe dos meus
filhos, não surgirão forças que domem
o grande sonho puro que sonhamos.
Como Francisco foi louco de Deus,
esse pobre Quixote, louco de homem,
abre à noite os caminhos por que andamos.
O segredo
Amar foi meu fortíssimo segredo.
Pus meu ofício humilde e bom de poeta
a seu serviço, sem vanglória ou medo,
fiel a essa aspiração secreta.
Cuidei de amor a todos os instantes.
E se acaso me viram descuidado
fingia apenas, como nos semblantes
dos atores o teatro é simulado.
De olhar atento andei pelo mistério:
água de mina para minha sede
e no deserto pão e refrigério.
Neste cair da noite, amigos, vede:
a aleluia infantil nos acompanha,
voz do amor na descida da montanha.
Os pássaros da infância
Os pássaros da infância, ressurgidos,
trago numa só mão para te dar.
Ouve-os cantando, agora renascidos
entre os galhos mais altos do pomar.
Voltam. Pelo destino vêm tangidos.
A vida neles me mandou pelo ar
não exercícios novos e subidos
mas trova antiga — ao gosto popular.
Para te repetir seu canto puro
não sei que sobrevida resta.
Seja quanta for, bastará, porque sobeja
amor jurado neste verso duro,
mas teu somente e livre de pensados
inventos e lavores trabalhados.
Paz de amor
Calemos esta paz como um segredo
de amor feliz. Não seja este silêncio
ponto final em nosso terno enredo:
não nos encerre o amor, antes condense-o.
Olhemo-nos nos olhos face a face,
sem recuar surpresos como o amigo
que de repente no outro deparasse
apenas o lembrar do tempo antigo.
Não. Sempre em nós renascerão searas,
novas chuvas trarão nova colheita,
folhas novas, translúcidas e raras.
E brotará da tua mão direita
— água súbita e casta do rochedo —
um novo amor, que vença a morte e o medo.
Retrato no campo
Gosto das coisas ásperas, e entanto
vivo deitado à sombra dos teus olhos.
É rouca a minha voz, porém meu canto,
em vez de cardo e areia, sabe a molhos
de malva, de alecrim, de ervas de cheiro,
que num carinho delicado e atento
mão de mulher plantasse num canteiro
protegido dos bichos e do vento.
Nasci para a paixão amarga e forte
mas foste o claro sol, de luz serena,
céu azul, som de sinos, voz de crianças.
Frágil, frágil, porém venceste a morte,
e a infância renasceu, visão terrena
de cavalos pisando flores mansas.
Soneto de Epifania
Trago-te, ainda uma vez, as cor-de-rosa
rosas de ontem, de hoje, de amanhã,
para teu colo maternal de esposa,
para teu sonho de mulher e irmã.
A vida inteira, agora dolorosa,
agora alegre, desde a antemanhã
do nosso lar, concentra em cada rosa
tons delicados, naturais, de lã.
Tivemos, juntos, tanto que aprender…
Tivemos juntos tanto que ensinar!
O amor não foi um simples patamar
com gritos de meninos a brincar.
Dos seres juntos nasce novo ser,
pétala e espinho, solidão e mar…
Segundo soneto de Epifania
Fala o silêncio em nós mais do que as rosas
que não vos trouxe nesta Epifania.
Calaram-se na tarde as rumorosas
moitas, cheias de pássaros no dia.
Quantas asas de amor! As dolorosas
horas de pungentíssima agonia
foram por elas, misericordiosas,
tocadas de pureza e de alegria.
A nossos pés se estende todo o vale.
Nada careço mais dizer. Por mais
que grite versos novos e subidos
nada direi que não direi se cale.
Cada segundo de silêncio traz
o reviver dos anos já vividos.
Soneto da primogênita
Não direi que uma rocha apenas, ou somente,
na montanha de pedra, um pedaço de mata.
Há mais e muito mais: manhãs de antigamente,
rasgões de céu azul, velhos copos de prata,
a mancha que a criança, involuntariamente,
como um borrão de sol joga na própria bata,
no encontro entre o passado e o futuro — o presente —
e o que a infância adivinha e o que a noite desata,
papoulas no além-mar, vilas de Portugal,
campos no entardecer, mares ao meio-dia,
a resina a descer, lenta, no pinheiral,
a vida que na luz pura se refletia,
mundo, jogo, visão, sacrifício, sinal
nos doces olhos bicolores de Maria.
Soneto da tarde
Não digo que o sol pare, nem suplico
que teu cabelo não se faça branco.
Nos segredos serenos que fabrico
vive um pouco de mago e saltimbanco,
mas te desejo simples, natural,
e que o dia na tarde amadureça.
Venceste muita noite e temporal.
Confia em que outra vez ainda amanheça.
O teu reino da infância sempre aberto
guarda o campo e os brinquedos infinitos
nas cores puras, sob o céu coberto.
Nos cajueiros, os pássaros… Os gritos
infantis… Mas a ronda neles nasce
e embranquece o cabelo em tua face.
Soneto de latão
Como no samba popular, um choro,
sereno e manso, porém seco e nobre,
ponho a teus pés. Parece feito de ouro,
mas em vez disso, é do latão mais pobre.
Basta arranhá-lo: é coisa de namoro,
uma liga pobríssima de cobre
banhou-se em luz, vestiu-se de tesouro,
a fim de que o teu peito ao meu se dobre.
Em troca da fraqueza deste grito,
que mal se escuta e foge para os longes,
como quem reza um samba de Noel,
constrói comigo e para sempre o mito
do amor que junte os êxtases dos monges
e a paixão dos folhetos de cordel.
Soneto de Nossa Senhora
A Nazareth, no dia do lançamento
deA vida de Nossa Senhora
Que a Senhora te cubra com seu manto
hoje que é nossa festa em seu louvor.
Deite as asas do Céu sobre meu canto
e as bênçãos do silêncio em nosso amor.
Das tuas mãos, lavadas na fragrância
de uma inocência sempre renascida,
brote a visão da permanente infância
e o milagre do amor salvando a vida.
Que amor? O amor dos homens e dos seres
mais humildes e simples. E tão puro,
marcado de castíssimos prazeres,
que transfigure em luz o dia escuro
e mude as aflições de cada hora
em alegrias de Nossa Senhora.
Um fio de erva
Se a terra removida da montanha
para rasgar cidades e jardins
se pudesse juntar num só punhado
e pudesse caber numa só mão
para nela plantar um fio de erva
que viesse a apontar para a amplidão;
se a energia secreta da matéria,
mal arrancada do seu próprio chão,
no fio de erva — um só! — se concentrasse,
então no meu amor, minha Senhora,
imagem do meu bem talvez se achasse,
e na luz vegetal do fio de erva
se refletisse, feito de pureza,
o sorriso que canta em vossa face.
Um só amor
Amores? Não. Cantei um só amor.
Não me arrependo da monotonia
nem de cantar a posse e o possuidor.
Se abelhas mansas dentro em mim havia
por que negar o voo para a flor?
Até na momentânea nostalgia
nossa pátria era a mesma. A própria dor
uniu mais do que junta uma alegria.
Chegou a noite e seu silêncio
mas para aclarar o mundo a luz secreta
em teu cabelo pôs manchas de prata.
E teço versos como quem refaz
a vida. Todo o meu mister de poeta
é de amor: madrigal e serenata.
Versos para um sossego
sobre mote de Abgar
Mote:
E porque sou antigo, esquerdo e triste
Abgar Renault
E porque sou antigo, esquerdo e triste,
mais triste do que tudo quanto existe,
e hoje, o que é pior, estou mais triste,
sei que toda a ventura em vós consiste.
Basta-me ver-vos para estar contente,
vejo-vos e renasço alegremente,
e de vos ver e amar sou bem contente,
a alma vos sonha, o coração vos sente.
Não vos quero ferir a placidez,
sempre vencendo a dor, a qualquer hora
tingida com a cor das madrugadas.
Amai-me bem, e alegre. Assim, talvez,
nada perturbe a vossa paz, Senhora,
feita da luz de pequeninos nadas.
Cantigas de Amigo
RIO 1979
Prece de Nilo Pereira à Virgem da
Conceição na Matriz de Ceará-Mirim
Dá, Senhora, que eu volte todo ano
para a teus pés me ajoelhar aqui.
Pelo simples poder do amor humano
fui teu menino e sou: nunca cresci.
Do patamar, além do espaço urbano,
o Verde-Nasce, onde também nasci,
revive um mundo — que suave engano! —,
mundo de outrora que jamais perdi.
Vejo os cavalos, as caleças, tudo,
mesmo na igreja os que se foram vejo,
suas cadeiras com lugar marcado.
Os engenhos, o vale… Fico mudo
em meio ao verde, às ruas… O realejo
do ontem… Mãe, estou ressuscitado!
Soneto de Parnaíba
Para Isabel e Velloso
e também para Socorro
Os sinos a tocar e a procissão
com seu povo no santo alumbramento,
de pedras na cabeça e pés no chão;
coqueiros mansos contra o firmamento,
búzios vivos do mar de Amarração,
peixes no anzol, lavados de onda e vento,
conchas vermelhas do areal na mão;
o cajueiro do poeta, o sentimento
dos namorados rabiscando as palmas,
e a eternidade efêmera dos cactos;
águas de rio e oceano confundidas;
casas tranquilas e tranquilas almas,
na linha reta dos canais exatos,
na paz sem fim das angras escondidas.
Soneto de São Luís
Para Bandeira Tribuzi
nos seus cinquenta anos
Poeta, amigo, irmão, há no teu canto
um acento de pasmo tão profundo
que, no acender da aurora, se faz pranto
e, montanha de gelo, aclara o mundo.
Em soluços de amor, um touro de águas
vem pelo mar, rumo à cidade antiga,
coberto de miçangas e de mágoas,
para vencer a morte na cantiga.
Não pele e osso apenas, porém sangue
e essa humana paixão quebrando o peito,
fraterna e branda, polpa e sumo ardente.
Um sobrado irreal sobe do mangue,
e o mundo de amanhã, livre e perfeito,
invade os ares na visão nascente.
(Rio, maio de 1977. O poeta morreu do
coração a 8 de setembro seguinte.)
Soneto de visitação
À Exma. Sra.
Dona Maria do Carmo Vilaça.
Baronesa de Limoeiro.
oferece, dedica e consagra o A.
Sois, Senhora, daquela meiga raça
que povoa o romance de Machado.
Em vez de Ayres, vos chamais Vilaça,
mas sois igual à dama do passado.
Mistura de energia e de luar,
santa, zelais pelos sertões de gado,
princesa, abris as portas do solar,
e há um punhal de cangaço ao vosso lado.
Mas Dona Carmo sois — como era ela.
Só que, em vez da almofada, usais a sela.
Trazemos o soneto prometido:
a vossos pés, o Rio de Janeiro rasga
a manhã de festa, enriquecido
no olhar da Baronesa de Limoeiro.
Recado para José
Para José Sarney
em Cleveland, 16.12.73
José, lá fora cai neve
como em Fernando Pessoa.
E a neve faz da cidade
estranha, uma mancha boa.
Cai, Marly, e junta tudo,
casas, árvores na mão.
Branco da sua brancura
passa a ter um coração.
Bate à janela e me entrega
no quarto, enquanto que ao lado
por uma voz de menino
um paperé pregoado.
Estou tão longe de tudo!
Penso em vocês, no sertão!…
Vamos descansar lá juntos:
cavalo bom, rede, leite,
bacuri e requeijão…
A neve aumenta lá fora
e tudo se une na mão.
E tudo vos mando agora
na mão — com meu coração.
Soneto da Irmã Teresa
Para a monja cristã Teresa Amoroso Lima, O.S.B.,
no dia 12 de dezembro de 1977, Festa de Nossa Senhora de Guadalupe, em que comemora seus 25 anos de profissão monástica, na Abadia de Santa Maria, dedicada à Santíssima Trindade, inaugurada na véspera, 3º Domingo do Advento.
Não lhe trazemos a presença física,
nem os dons da terrena epifania,
nem a visão celeste, paradísica,
de santa e fecundíssima alegria:
em nossas mãos sem sábia metafísica
apenas o viver do dia a dia,
e dores, mais mortais que outrora a tísica,
que mudamos em fonte clara e fria.
Irmã Teresa! Quantos desenganos,
risos e bênçãos, lágrimas, promessas,
lhe pedimos que ponha aos pés da Cruz.
Deus a proteja! Nos vinte e cinco anos
reze de novo por nós todos, nessas
bodas de prata com o Senhor Jesus!
Soneto dos quinze anos
Para Anna Cecília
Cheiram flores de manga de Apipucos.
Praias de muito mar e céu aberto.
Móveis polidos. Seculares sucos
de poesia contidos no encoberto
verso de Baudelaire ou Mallarmé.
Na prosa secretíssima e incorrupta
a música é tão sábia que se vê
e de repente se incorpora em fruta.
Vinde, maracatus pernambucanos,
violeiros do sertão tocando ao luar,
água nascendo no areal deserto,
trazer ervinhas e dourados panos
para a menina-moça do solar,
flor do recife de coral liberto,
neta de Madalena e de Gilberto.
Memória da Cidade Natal
RIO 1979
Memória da cidade natal
Da cidade onde um dia a madrugada
me penetrou no peito para a vida
e minha Mãe, na face enluarada,
a um sorriso calado deu guarida
para acolher o filho que nascia
moreno como as pedras e os pardais,
no calor de dezembro, na alegria
ruidosa do preparo dos Natais,
conservo na memória o cheiro bom
de pão, pamonha quente e manga em flor,
enxurrada, ladeira, praia rasa,
e a sombra onde escutei primeiro o som
do nome pai, vendo a primeira cor
nas telhas velhas da primeira casa.
O sobrado
O sobrado é rio
de cal e parede
com vidas humanas
deitadas na rede
O sobrado é barca
de estranha textura
com vidas humanas
como tessitura
O sobrado é leito
de sexo e pejo
com vidas humanas
num claro azulejo
O sobrado nasce,
renasce com o dia,
se as vidas humanas
lhe dão alegria
O sobrado morre
nas ruínas sem dono
se as vidas humanas
lhe dão abandono
O sobrado é belo
mas sua beleza
sem vidas humanas
só lhe dá tristeza
Devocionário das igrejas de São Luís
Dá-me de novo o braço para a vida.
Diante de Deus somos os dois sozinhos.
Na igreja branca vem pedir comigo
ao Senhor do Rosário dos Pretinhos.
Peçamos juntos sua proteção
contra os males da terra e os mares bravos.
São Benedito vai na procissão,
seguiremos descalços feito escravos.
Não pedimos riquezas nem fazendas,
não queremos poder, mando nem glórias.
Mas nos pomos na tua proteção
minha Nossa Senhora das Vitórias.
Nem reabrimos as chagas, fundas, cruas,
em nosso peito já cicatrizado:
São João nos poupa das espadas nuas,
foi ele quem me viu ser batizado.
Nunca em nós houve má tenção embora
fôssemos ambos carregados de erro.
São José do Desterro nos perdoe,
abençoe-nos a Virgem do Desterro.
E não tentamos nunca — Deus louvado —
negar a culpa que do mundo vinha.
Não. Jamais nos passou pela cabeça
meter um dia a Sé na Sant’Aninha.
Debalde busco os templos que ainda vi,
ó minha Sant’Aninha e Conceição.
Diga o Senhor aos santos se jamais
quem derruba as igrejas tem perdão.
Vamos agora ao Carmo pedir crédito
da boa ação que marca nossa vida:
uma pia furtada ao seu Convento
foi por nós à cidade devolvida.
Em Santo Antônio andou o Padre Antônio
Vieira e até pregou na sua igreja.
Se pisou neste chão, de nada importa
que seja a mesma a casa ou que não seja.
Que importa não haja mais o casario
que o escutou, onde pousou o olhar?
Vem comigo. Rezemos pelo Padre
na igrejinha do Paço do Lumiar.
A vida foi passando. De oito vezes
ela te fez avó e a mim avô.
Deu-nos Nossa Senhora dos Remédios
nos netos o remédio que bastou.
A vida foi passando e nos fez juntos
os corações no mesmo coração.
Com quem, não sendo tu, irei jamais
tocar sinos em São Pantaleão?
Nesta boca da noite vem comigo
pedir a São José de Ribamar
que nos acolha na velhice num
sobrado de azulejo em frente ao mar.
A vida foi vivida. Às mãos de Deus
entreguemos as folhas deste outono:
sob a morena paz desses telhados
o Senhor do Bonfim nos vele o sono.
O paredão
Na muralha de louça, este azulejo
não se distingue dos demais. Sozinho,
concentra em si um mundo que revejo
nos desenhos e cores do caminho.
No painel dos sobrados há soluços
que o tempo aqui deixou: a madrugada
escondeu muitas vezes em seus ruços
mulheres a rondar pelas calçadas.
Também cantaram carnavais, tumulto
de dominós vestidos de ouro e prata
nas varandas, ao vento do oceano.
Passaram procissões no ingênuo culto
de pedras e anjos. Quanta serenata!
E o paredão se impregnou do humano.
Os telhados
Não cantarei telhados impossíveis,
telhados de ar erguidos no ar vazio,
mas humanas feituras, elegíveis
contra a chuva, o sol quente e o vento frio.
Coisas comuns a toda a humana gente,
sem a angústia das torres e das vagas.
sem a filosofia transcendente
dos sábios, mas humanas como as chagas.
O lodo que ficou nesses telhados
é a vida que um dia se viveu,
para sempre marcando o próprio eu.
É como os miúdos fósseis retratados
dentro da pedra que, quando se parte,
são arte mais perfeita do que a arte.
A Casa
RIO 1979
A Casa
A meu filho Márcio Tavares dAmaral,
autor de outra (e mais bela) A Casa
Casas que tive na vida
foram tantas, foram tantas…
As casas de minha infância…
E a casa que mais amei
onde meus filhos brincaram
por onde primeiro andaram,
com as próprias mãos derrubei.
Ah! não me falem de casas
que eu nesse assunto de casas
sou São Francisco das Chagas
com uma chaga só no peito.
A visão de cada casa
noutra casa se penetra
fica uma chaga secreta
feita das casas que amei.
Não amei apenas uma
nem uma só preferi
com igual amor amei
cada casa em que vivi
pois a presença das coisas
sua amorosa visita
a paixão dos bens terrestres
tive sempre como lei
e cada casa vivida
foi uma casa que amei
mas a que tive por minha
foi essa que derrubei.
Nesse ato consentido
— plena aceitação da sorte —
havia a força das forças
vencedoras sobre a morte:
no sangue e não no tijolo
que sustenta cada casa
moram lição e consolo
sobre os buracos da estrada,
moram forças excelentes
nascidas de velhas gentes
na vida continuada.
Amor mais forte que a morte
guarda a casa derrubada
como borboleta ou flor
de lírio-do-brejo seca
num breviário guardada,
e faz florir a alegria
na vida continuada,
e constrói a casa nova
que será também amada,
por pés infantis pisada,
pelos anjos bem guardada,
por móveis velhos e novos,
por berços, quadros e livros,
mesas, retratos e copos,
as teclas da minha máquina,
as saudades dos meus mortos,
cestos e barros povoada,
com as conversas e os risos
da vida continuada,
a esperança renascida
por entre pedras brotada,
quaresma roxa florida
numa pedreira rasgada,
e a casa agora habitada
aos poucos se faz amada,
começa a guardar os ecos
de cada criança, de cada
filho, neto, visitante,
balbucie, ou fale, ou cante,
diga muito ou diga nada.
E a casa começa agora
a ser devagar amada
como uma caixa de música
pela vida saturada,
dos sons da vida entranhada,
— uma colmeia sonora
da abelha humana habitada —;
e a parede, palmo a palmo,
pela vida visitada,
as casas da minha vida,
mesmo a por mim derrubada,
une, junta e consolida,
vem me dar numa só casa,
assim transfeita, reunida,
a mesma, porém mudada,
como se fosse, a um só tempo,
cada uma velha morada
e outra nova, inaugurada
ainda na manhã passada,
no sangue transfigurada,
e viva, transumanada,
mas inda cheirando a tinta,
que de novo foi pintada,
e a madeira que se pinta
fica dos óleos marcada,
cheira a novo, cheira ao cheiro
da casa nova que ainda
não foi de gentes morada.
Sim, viva, transumanada
e assim transubstanciada
a essência de cada casa.
mesmo a da casa que erguera
e foi por mim derrubada,
a essência de cada casa,
quotidiana, semeada
de vida continuada,
pelo amor transverberada
de sorte a se ver a sombra
pela outra casa deixada,
mesa e faca, porta e rede,
janela, cama, parede,
sangue e voo, luz e brasa,
ressurge numa só casa
— uma só, ressuscitada! —
de meninos povoada…
Casa que a todos nos ama
e é por todos nós amada,
como se fosse de noivos,
só de noivos, habitada;
e cada criança crescida
fosse dela conhecida
desde a primeira passada.
E essa casa, assim brotada
do chão da vida passada,
árvore inteira arrancada
à mata onde foi nascida
e era a mais alta, banhada
de sol desde a madrugada,
raízes cheias de terra,
fronde em pássaros florida,
copa de ninhos nos galhos
e de insetos pelas folhas,
de borboletas nas folhas
banhadas pelos orvalhos,
boiando feito jangada,
canoa santa jogada
nas águas de nossa vida,
com Nossa Senhora dentro
e os anjinhos a remar,
vem pela noite perdida
porém ancora no mar.
No mar, mas numa enseada,
entre areias escondida
em meio a dunas cobertas
por ervas e protegida
nas colinas descobertas
pelas águas transparentes
de olhos d’água e de nascentes.
Assim funda, assim azul,
era a levada no paul
de quando eu era menino…
Morada do meu destino,
no mar, mas numa enseada
entre areias escondida,
a casa é casa e é barca,
e mais do que barca é arca,
com a semente da vida
entre vidas repartida.
é vida sobrevivida
no dilúvio navegada,
e na montanha ancorada
para a Suprema esperança.
A casa é canoa e é barca
é a arca da esperança
arco-íris da aliança
recanto de vida e paz
onde se lê numa rede
de dormir e fecundar.
por mãos de mulher tecida
como inscrição na parede
não de morte mas de vida,
não de lodo mas de flor,
onde se lê nessa rede
pelas mulheres tecida,
escrita assim, linha a linha,
e fio a fio batida,
enquanto os homens trabalham
na desmancha da farinha,
essa farinha que é pão
para a fome do sertão,
a rede que é também cama
onde faz filhos quem ama,
a casa, o recanto, a rede
em que se lê — eu dizia —
como aquele Anjo que um dia
o disse à Virgem Maria, anunciando o Senhor:
— Deus convosco
Deus é Paz,
Amor e Paz,
Paz e Amor.
Dois novos poemas de romaria
I
À memória de Isaac Babel, que
padeceu sob o poder de Joseph Stalin
e não teve túmulo.
Agora que lês os contos de Isaac Babel,
pensei em convidar-te a vir comigo
visitar em pensamento os que, como ele, morreram
em insuportável sofrimento corpóreo,
e cuja voz, entretanto, através do tempo, dos campos e das águas,
das montanhas e das estepes,
nos faz companhia e nos ajuda a viver,
com histórias e poemas,
na travessia das noites de insônia.
Não foram apenas Babel, Pilniak, Mandelstam.
Foram mais, muitos mais. Inumeráveis e inermes.
Mas inconquistáveis. Livres!
Nenhuma cruz assinala o lugar onde jazem,
nem ao menos se sabe, ao certo, como nem onde morreram,
em que parede tentaram riscar o último verso,
a quem quiseram confiar o derradeiro manuscrito.
Vem comigo para a romaria impossível.
Há grãos de areia manchados de sangue no caminho
que o Pequeno Polegar marcou na floresta
ao decidir enfrentar o monstro Leviatã,
metido em desajeitadas roupas de homem
que ao mesmo tempo o faziam patético e frágil.
II
À memória de Dietrich Boenhoifer,
que padeceu e morreu na forca,
sob o poder de Adolf Hitler.
Teve escrúpulos de celebrar o ofício
pois a maioria dos presos era de católicos
e entre eles havia também um russo, comunista,
sobrinho de Molotov. Mas todos,
todos, se uniram para convencê-lo
e pedir-lhe que por todos rezasse.
Disse as orações até o fim.
Mal acabara,
abriram-se as portas da cela.
Dois civis entraram:
— Preso Boenhoffer…
O moço pastor protestante adiantou-se.
Levaram-no sem o mínimo gesto de inútil resistência.
Os guardas perguntavam a Dietrich Boenhoffer:
— Sabe por que está preso?
— Não, replicou incessantemente,
sob a tortura.
E em silêncio prosseguiu nas orações
pelas vítimas e pelos algozes.
Enforcaram-no.
Eram nove de abril de 1945.
Os canhões já destruíam Berlim,
onde, no dia 30,
sepultaram Adolf Hitler, sem orações.
Poemas Portugueses
Testamento de Dom Sebastião
Não foi para esquecer minha fraqueza carnal que vim à guerra
mas para retomar a visão do Imperador:
a vitória virá com o Sinal da Cruz nos céus.
Mas, se Deus não me julgar digno,
quero findar, no campo de batalha,
comigo mesmo e o grande sonho do Esperado,
ouvindo ainda, dentro de mim,
o ressoar do grito de alegria do povo quando nasci,
homens e mulheres correndo nas ruas de Lisboa, acordadas noite alta, [rumo à Sé:
— O Desejado! O Desejado!
Sei que os Embaixadores de Espanha murmuram
porque nunca levantei olhos para dona,
esqueço-me no jogo de canas todo um dia,
mas nem por um instante espio as janelas,
e só me prometem a Infanta por ser muito menina.
Meu corpo não se fez para corpo delicado de mulher,
nem permito que toquem minhas mãos com suas mãos
— quando me servem o vinho nas copas de louça —
para não tentar minha castidade cristã, prometida em confissão.
Nos dedos de minha Mãe, nesses confiaria,
repousaria,
me esqueceria,
mas minha Mãe partiu e não a conheci:
tinha eu cem dias, de nada me lembro,
tinha eu cem dias: pela última vez lhe suguei o leite do seio.
Nunca mais a vi — e era homem feito e rei quando morreu.
Nem ao menos recordo seus cabelos, seus olhos, seu rosto.
Fui órfão de mãe viva
mas sei, por ouvir toda manhã, com o Padre Nosso,
e à tarde, com a Ave Maria das vésperas,
que era louçã, perfeita na carne e no espírito.
Sei também que nunca deixou de pensar em mim
e mandou médicos de Castela para cuidar desta minha timidez diante das mulheres.
Sua presença é que me libertaria, pobre de Minha Mãe,
filha do Imperador, princesa de Espanha — e sempre viúva!
Sozinha até na morte dolorosa.
Quanto a mim, sou belo e forte mas desconforme,
tenho cabelos louros e olhos azuis,
a assimetria dos escolhidos, o belfo e os sangues dos Áustrias,
e às vezes atravesso as noites sem dormir,
sonhando sem sono o Mundo e os novos mundos.
Se me canso na caça não é por sede de sangue
mas para que o cansaço mate a insônia.
Não vim para possuir ou ser possuído,
pois as mulheres enfraquecem o Herói
e não quero morrer de amar — como meu Pai.
Não me imagino Rei,
sentado,
imóvel,
doméstico,
brincando como o príncipe francês,
adoçado por presenças infantis.
Nem quero gerar filhos
porque sei que os teria de matar:
meu próprio primo conheço como foi que morreu.
Sei também
que é no papel que agora se criam impérios,
mas detesto o papel e as artes da escrita
porque distraem as mãos que mudam a História.
Neto de João Terceiro e Carlos Quinto,
sou o Capitão de Cristo.
Somente? Somente.
Mas haverá missão maior?
Mando mais alto?
Sonho África não pelos escravos
mas pelo areal sem árvores.
Hei de ajoelhar os mouros
diante da Cruz de Nosso Senhor.
Mandei a meu tio Filipe, num casco de ouro puro,
meu desprezo pelas riquezas do mundo, manejadas dos gabinetes,
meu amor da glória nos combates.
Meus soldados trouxeram guitarras na bagagem,
eu, uma coroa cerrada de César
para quando a vitória me coroar Imperador,
— só, entre os meus, Eu, puro, diante de Deus!
Espero o sinal de Sua vontade.
Ele, só Ele, pode o milagre e a conquista do Gral.
Não sou homem do mar mas da peleja em terra
e da armadura de prata.
Confio na mão de Deus!
Se perder, pelo peso e culpa dos meus pecados,
não pela pouca fé do meu povo,
capaz de preferir os cilícios de ferro às roupas de seda,
se perder, meu Deus!…
a morte não me reconhecerá de tão mudado que estarei.
Montado em meu cavalo sabedor,
investirei contra os homens e a sorte,
para mergulhar no desconhecido.
Sei que nenhum português ficará vivo
vendo seu Rei morrer.
Caladas as violas do acampamento,
desaparecerei banhado em sangue que não será somente meu.
Ressurgirei num touro manso.
desfeito em areias brancas,
do outro lado do Oceano.
O avô Hernani
Portugal era a roupa que vestia,
a artéria aberta no materno barro:
como na guerra andara todo um dia
— na trincheira — à procura de um cigarro,
pensava nele sempre. Ainda se ouvia
na antemanhã, teimoso, seu pigarro
depois da noite de trabalho: e havia
no seu passo o arrastar do boi de carro
cortando sem descanso a terra ingrata.
Mas soube amar seu povo lusitano,
de poetas, santos, loucos, andarilhos…
Já o ouvido faltava. A leve prata
no cabelo aumentava cada ano.
Avô! Avô! Chamavam-no meus filhos.
Retrato de Vitorino Nemésio
Era um homem das ilhas, dos Açores,
que tocava violão. Tocava bem.
Talvez faltassem todos os rigores
do virtuosismo artístico. Porém
nesse improviso havia tal encanto,
tal à-vontade, que era, na verdade,
como se a gente lhe escutasse um pranto,
um grito, uma alegria, uma saudade…
E havia tanto que aprender com ele!
Era um amigo sem comparação…
Contava tudo. Até de uma cabrinha
falou num verso… Que poeta aquele!
De repente me vem do coração
a última vez de sua mão na minha.
Visita a José Régio
Vamos a Portalegre atrás da casa
onde viveu, um dia, José Régio,
tardos como o menino que se atrasa
e hesita antes de entrar para o colégio.
Demoramos demais. Não mais veremos
o poeta. Não há móveis a vender.
Os tapeceiros… Não lhes falaremos:
não trouxemos cartões para tecer.
Por que custamos dessa forma e tanto?
Mesmo a morada antiga de Lisboa,
onde íamos jantar, é só lembrança.
Procuremos, amiga, em nosso pranto,
por entre as pedras, a semente boa
onde o vento soão pôs a esperança.
Carta de Florbela Espanca
a seu amigo Guido Battelli
Só num verso é isso tudo a minha boca.
Pense antes num rosto de velhinha,
e nesse rosto, doentia e rouca,
uma boca infeliz, pálida: a minha.
De mim não há quem goste ou quem gostasse.
Queria ser mais moço? O que eu queria
era que o tempo para mim voasse,
meu amigo. Vinte anos num só dia!
Já me cansa morar em casa alheia.
Amores, mais de um, desperdicei-os.
O irmão que tive, o meu Irmão, perdi-o.
Só me resta a poesia: a lua cheia,
o Alentejo, a charneca em flor, os seios
magoados. Sou rainha. E tenho frio.
Diferença entre amores: o de Florbela e o nosso
Dedicado pelo A. a sua mulher que
lhe confessou andar com ciúmes de
Florbela Espanca por tanto ouvi-lo
falar de sua vida e de seus versos.
Meu Deus! Ciúmes de Florbela Espanca
que amou perdidamente — até morrer.
Ciúmes da princesa doida e branca
que amou demais o amor — sem nunca o ter.
Ciúmes da morta flor, noturna e forte,
em cujas matutinas sensações
a pobreza tecia a luz e a morte,
versos, carícias e alucinações.
Mas nosso amor a vida é que o governa.
Os seus espinhos esfiapou de lã,
e deu-lhe as formas de uma criatura
que é delicada mas se fez eterna,
no ontem busca as auroras do amanhã
e se sabe fiel, fecunda e pura.
Último Verso
RIO 1979
O amor calado
Ainda que o canto desça, de atropelo
como abelhas no enxame alucinante
em torno a um tronco, e me penetre pelo
ouvido, em sua música incessante,
juro a mim mesmo: nunca hei de escrevê-lo.
Hei de fechá-lo em mim como diamante
dentro da pedra feia. Hei de escondê-lo
na minha alma cansada e navegante.
E nunca mais proclamarei que te amo.
Antes o negarei — como os namoros
secretos de menino encabulado.
Que se cale este verso em que te chamo.
Cessem para jamais risos e choros.
Meu amor mineral é tão calado!
Cabelos
Queres cortar os teus cabelos? Corta!
Não receies que neles vão levados
a memória fiel da manhã morta
e o sol que os beijou soltos ou trançados.
Deixa-os ir sem saudades. Pela porta
por onde foram voltarão lembrados
os dias de ontem (idos? que me importa?),
as noites em que foram machucados…
Quando o amor, como em nós, se cristaliza,
petrificado no cristal mais limpo,
fica acima de modos e de zelos.
Descendo a mão pelo ar, ágil, precisa,
como quem cata luzes no garimpo,
vou murmurando adeus aos teus cabelos,
dizendo adeus aos teus cabelos brancos
onde ficou a marca dos barrancos,
onde a vida deixou seus sete selos.
Insônia
Deito-me. Leio. Já são duas horas:
esta insônia cruel mais uma vez.
Que fazer? Recordar até desoras?
Ler ou reler histórias que outro fez?
Nunca ouvi rouxinol. A mãe-da-lua,
essa, ouvi tantas noites! Ainda agora
dentro de mim, presente como a tua
imagem, canta sempre — a qualquer hora.
E na mangueira, em frente à minha casa,
no sítio antigo, que não mais existe,
ouço-a sem vê-la, adivinhando-lhe a asa;
e ela volta a cantar, oculta e triste.
Mas nesse canto, repetido e fundo,
mora a continuidade que perdi.
Posso acordar para encontrar o mundo
e as roupagens da infância que vivi.
Sou prisioneiro desse chambre antigo,
desse pijama, dessas alpercatas,
mas no reino perdido, a sós comigo,
liberto como os pássaros nas matas.
E me faço a pior das companhias.
Foi-se-me o gosto do viver terrestre.
Já nem quero fugir para alegrias
de sol urbano ou de ventura agreste.
Fujo de mim. Minhas recordações
têm um travo terrível de água morta.
Ó vinde a mim, novas fabulações,
e me guiai para a celeste porta.
Lembra-me que, eu menino, assim ficava
esperando a chegada das auroras,
vendo a treva ceder. Meu Pai mandava:
“Apaga a luz, não leias a estas horas.”
Não leio mais. Não li os livros todos,
como outrora meu Poeta se queixava.
Nem acho a carne triste, nem nos lodos
fiquei preso, em delírio e febre brava.
Sou apenas um homem que recorda
e que imagina em meio à noite. Dói
por demais a saudade. Dói e acorda,
e não deixa dormir, nem ler, e mói…
Mói sempre, mói interminavelmente
as nossas águas já passadas. Mói!
Quanto mais águas voltam na corrente
mais o passado canta, alegre, e dói…
E então já não as busco, nem calculo
que horas serão, nem ouço a mãe-da-lua.
Nos contos inocentes que fabulo
toda a esperança está na imagem tua.
E ela me salva, como a caparrosa
que cobre furtacor os riachinhos.
A água parada faz-se luminosa.
Nasce a manhã nas casas e nos ninhos.
E ressuscita agora, em cada imagem
que no mundo dos homens aparece
contida em flor e folhas, a selvagem
força das coisas, transfundida em prece,
limitada em secreta disciplina
na livre ordenação da natureza.
A alma dobra os joelhos e se inclina,
cada confirmação é uma surpresa.
E eu me surpreendo, de alma agradecida,
em face de milagres e malfeitos.
A alegria ocultíssima da vida
vai soletrando novos parapeitos.
E eu tudo aceito, em tudo me extasio,
paisagens, seres, mares, continentes,
a água barrenta do terreno rio,
a lama e a linfa limpa dos afluentes. Passo do desespero para o dia
claro, da noite inquieta para a luz:
se tivesse meu símbolo seria
um olho d’água que nasce ao pé da cruz.